as histórias desenhadas de Ronaldo Fraga

Essa semana chega às livrarias o livro “Caderno de Roupas, Memórias e Croquis”, um registro cuidadoso do processo criativo de Ronaldo Fraga nos últimos 18 anos.


#bookdodia

Olhar um caderno de desenho, um mural de referências de um profissional da criação é como entrar em sua casa, reparar na decoração, nos porta-retratos e espiar os outros cômodos mais privados sem ser convidada. É como abrir uma portinha para o cérebro do outro, sabe?

O livro é uma aventura imagética que engloba da coleção verão 2013 (Turista Aprendiz na Terra do Grão-Pará) até o inverno 1996 (Eu Amo Coração de Galinha). 

Eu Amo Coração de Galinha - Inverno 2006

Nara Leão Ilustrada por Ronaldo Fraga Verão 2008


Turista Aprendiz Verão 2011
Contudo, uma das leituras possíveis do livro reside nos escritos que apresentam as coleções. Com o passar dos anos Ronaldo foi lapidando também a forma textual como costura referencias e inspirações para contar suas histórias usando a moda como plataforma.

Aproveito o lançamento do livro para tirar da gaveta o bate-papo que tive com o estilista ano passado quando estava morando em Buenos Aires. Ele visitou a capital argentina para participar da edição anual da Conferência do Centro Metropolitano de Design – realizada em um espaço de proposta inovador e localizado no bairro de Barracas.

Ronaldo Fraga ao lado do Gardel feito de post-it/ foto: Rogerio Lacerda©

O estilista é super reconhecido por lá.  Conseguia dar poucos passos e logo era abordado por um fã portenho. Ele me explicou que a coleção “Quem Matou Zuzu Angel” (verão 2002) é uma referencia na Argentina porque trata uma passagem trágica do período da ditadura militar com muita poesia, coisa que quase ninguém consegue fazer por lá.

A coleção Disneylândia (verão 2010) ele fez inspirado no México, mas abrangendo seu olhar para toda a América Latina. Reproduzo o texto de apresentação aqui:

Agora olho para a América Latina que definitivamente não é dos generais e dos ditadores cucarachas perdidos no tempo. Que não é a do visto negado para entrar nos Estados Unidos ou que acredita que a corrupção é cultural...
Namoro uma América Latina multipolar de riqueza multipolar, de riqueza cultural afetuosa e inesgotável. Meus olhos brilham pelas festas mexicanas pelo artesanato têxtil colombiano, pelo cinema argentino, pela obra de Borges, Cortazar e Gárcia Marquez.

O estilista começou sua palestra confessando o quanto é fã do cinema argentino e foi assim também que começamos a nossa conversa:

Cinema Argentino
Eu admiro muito a capacidade dos argentinos fazerem filmes onde se privilegia o roteiro. São filmes feito com baixo custo! Eles retratam muito bem a época em que estão vivendo e mostram como eles são. Gosto muito dessa melancolia; do drama que aparece mesmo quando é uma comédia. Um dos filmes mais lindos que vi na vida é “O Filho da Noiva”. Trata com sutileza as nuances do nosso tempo. Também adorei “O Homem ao Lado”.

Coleção Inverno 2013 
(que apresentaria poucos dias após sua visita a Buenos Aires)
Quatro pessoas diferentes me presentearam com o livro “Ô Fim do cem, fim...”. É um Fax-Simile do diário do Pedro Paulo, irmão do Paulo Pedro que esteve internado na mesma enfermaria do Arthur Bispo do Rosário.




Ele fazia a escrita do mundo. Quando vi o livro percebi que não era um livro para ler. Pensei “a leitura aqui é outra, a escrita aqui é outra”. A escrita o libertou da doença. Foi o que deu estrutura e armadura pala ele viver. E por que eu não lí? Porque não queria que fosse pelo caminho da “coisa feita por um doido”, que caísse no jocoso. O design (do caderno dele) é extremamente sofisticado. Por exemplo, Guimarães Rosa era letrado e inventava palavras. O Pedro se coloca como astrofísico. Ele inventava palavras também! É uma coleção extremamente gráfica. Parti de uma camisa de força para fazer os vestidos.

Escrevendo a moda...
A moda é escrita pessoal. Tem gente que escreve fazendo comida, tem gente que escreve fazendo moda, tem gente que escreve desenhando e te gente que escreve escrevendo. E a sua escrita pessoal tem que te libertar.

Criando seu próprio personagem...
Acho que a literatura é a fonte mais fácil pra você criar imagens. O Machado de Assis te dá o personagem. Drummond te dá o personagem. Você sente até o cheiro da roupa dos personagens (quando está lendo). A moda como é feita normalmente precisa de uma imagem para ser copiada, para ser repetida. A literatura te dá autoridade. Você vai criar o seu próprio personagem. Vai criar sua Capitu, sua Diadorin. A minha Diadorin e o meu Riobaldo não são os mesmos que o Guimarães Rosa imaginou.

Pra que fui inventar isso?
Eu sou escolhido pelos temas. E não é raro chegar no meio do caminho e me perguntar: “pra que que eu fui inventar isso”? É angustiante, mas essa angústia é transformadora.

Contar histórias...
Seu filho te pede para contar uma história, mas na verdade ele está pedindo um afago. Ele quer dormir ouvindo você contar alguma coisa. O ato de contar uma história para uma pessoa é um ato de carinho. O que eu quero vender pra você não é roupa. Roupa está todo mundo vendendo por aí. Eu tô vendendo uma página em branco para você construir um personagem. As vezes eu encontro as pessoas e elas falam: “tenho uma peça do Drummond, tenho uma peça da Zuzu Angel”.

Minha bandeira é...
Tem gente no Brasil que acha que eu levanto a bandeira de fazer moda brasileira com temas brasileiros. Não. Eu levanto a bandeira da referencia cultural. Meu ponto de partida é muito bem construído. Para alguma pessoas, por exemplo, o desfile da Pina Baush lembrava uma festa junina de Campina Grande (PB). Para falar da cultura do outro você tem que ter propriedade para falar sobre a sua.

Pina Bausch - Inverno 2010



Latinidade...
Até pouco tempo era impensável um evento de moda e design no Chile, na Colômbia e no México convidar um estilista brasileiro. A moda tem que ser entendida como valor cultural. As vezes eu chego aqui (em Buenos Aires) e as pessoas conhecem muito mais o meu trabalho do que muitos no Brasil. É inegável que o Brasil é a locomotiva da América Latina. É um pais grande. Acho que o Brasil tem uma relação de soberba, não dá muita bola para a América Latina. Hoje o Mercosul se reúne para analisar relações comerciais e deveria analisar outras coisas.

(esq.) China -  Inverno 2007; (dir.) Disneylândia de Ronaldo Fraga (verão 2010)


Os olhos que brilham diante de um mundo caduco...
O mundo está voltado para a América do Sul. Estamos passando por uma redescoberta. Ainda temos valores que o mundo perdeu: os olhos que brilham diante de um mundo caduco. Nós temos o know-how de convivência com a crise. Aprendemos a assobiar e chupar cana. Aprendemos que comédia e tragédia estão no mesmo lugar. É uma sabedoria no tempo que a gente tá vivendo.

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